
Clarêncio, o Otimista é uma série animada veiculada pelo Cartoon Network,
criada por Skyler Page e produzida entre 2014 e 2018, com cerca de
130 episódios distribuídos em 3 temporadas.
Trata
basicamente do cotidiano de um menino ingênuo e imaginativo, num
ambiente e numa época que ainda permitiam brincar na rua, subir em
árvores, colecionar insetos, conversar com estranhos sem medo e dar
vida às fantasias.
Nostálgica
e inteligente, faz referências à iconografia pop e exibe de modo
suave e engraçado assuntos e situações que poderiam ser polêmicos.
Por
exemplo, nada se fala do pai biológico de Clarêncio, mas junto com
o menino e sua mãe vive Chadão, um outsider imaturo parecido com
Homer Simpson. Nas nuances o entendemos como referência paterna, não
a ideal, mas a possível.
De
forma semelhante nos apresentam as famílias de seus melhores amigos.
O selvagem e fiel Sumô vem de uma família humilde e numerosa, mas
rica em valores. Já o excêntrico Jeff tem duas mães em união
homoafetiva. Sem mimimi partidário, o cotidiano dessas famílias
surge em suas diferentes matizes, naturalmente.
Recomendo
assistir ao menos alguns episódios que considero os melhores, como
“Os milhões do Clarêncio” (temporada 1, episódio 05), que traz
uma verdadeira aula de economia e leis de mercado. Tudo começa
quando Clarêncio questiona o método das estrelinhas usado como
punição ou recompensa por sua professora durante as aulas.
Revolucionário, o menino cria o dinheiro do Clarêncio, que
distribui gratuitamente para todos, indiferente ao mérito,
inflacionando o mercado das recompensas bioquímicas e causando uma
verdadeira rebelião. Para mais que uma incitação à revolução
socialista, gosto de usar este capítulo para exemplificar nossa
economia de afetos, que acontece quando cultivamos autoestima e não
dependemos mais dos valores estipulados pelos grupos, tornando-nos
indiferentes às ameaças de rejeição e constrangimento que ocorrem
quando destoamos do padrão.

“Escola
dos frangos da cavalaria” (temporada 1, episódio 26) é um
episódio que se destaca por suas referências a clássicos das
teorias de conspiração, como “Vampiros de almas” e suas
refilmagens. Numa iniciativa curiosa, a escola de Clarêncio se
submete ao patrocínio de uma rede de fast food e o que vemos aos
poucos é uma sucessão de técnicas de lavagem cerebral e coação
grupal que denotam cada vez mais o domínio das instituições sobre
o livre arbítrio no melhor estilo illuminati. O clima lembra filmes
de sessão da tarde como Criaturas (Critters, 1986), O enigma da pirâmide (1985) e Invasores de Marte (1986).
Já
“Nos Sonhos” (temporada 1, episódio 49) é surreal, abordando
temas como psicanálise e os conteúdos do inconsciente, enquanto
retrata o fenômeno dos sonhos lúcidos. Chega a ser didático.
Faz-me
lembrar de outra pérola que assisti recentemente pela Amazon Prime,
a série de anime Ghost Hound. Fechada em 22 episódios, trata-se da
adaptação de um mangá do mesmo nome onde três amigos passam por
experiências extrassensoriais como sonhos lúcidos, viagens astrais,
premunições, visões remotas, incorporações e outros fenômenos
paranormais.
A
consciência de que a realidade objetiva é apenas uma dentre as
várias dimensões da existência, permite encarar a vida como um
sonho.
Os
contos zen budistas falam do monge que sonhou ser uma borboleta. Ao
despertar, já não sabia mais se ainda era um monge que sonhara ser
borboleta ou se era uma borboleta sonhando ser um monge.
Nos
livros de Dom Miguel Ruiz isso que denominamos realidade é explicado
como uma convenção social, um sonho coletivo que os toltecas
chamavam de mitote. Nos sonhos lúcidos a plasticidade da matéria é
um fato. Talvez um exercício para a manifestação de realidades
fantásticas. A começar por “Os quatro compromissos”, somos
convidados a despertar desse sonho coletivo e assumir a maestria
pela criação e manutenção de sonhos mais encantadores, de uma
vida mais maravilhosa.
O
universo onírico é muito explorado nas premiadas produções dos
Estúdios Ghibli.
Também
no recente filme ganhador do Oscar de animação, Flow, somos
convidados a sonhar acompanhando um gato e seus amigos numa jornada
inesperada. Emoção e poesia em forma de imagens em ação.
Enfim,
voltando ao Clarêncio, na 3a
temporada o vemos incapaz de lidar com as mudanças e exigências da
puberdade, denotando a inabilidade dos roteiristas em tratar assuntos
mais densos com a mesma leveza e bom humor das temporadas anteriores,
talvez devido a sombra do politicamente correto que já pairava no
ar, ou simplesmente porque Clarêncio se recusa a amadurecer e acaba
virando um menino chato. Ainda assim, recomendo.
Assistir
as aventuras de Clarêncio é um exercício de brincar e sonhar.