domingo, 21 de fevereiro de 2016

Desmembrando-se das realidades! (contém spoilers)


Intriga-me a percepção do antagonismo na vida.

Eu não creio em crises.

O inimigo, o problema, o percalço, o desafio, o difícil.

Uma situação pode ser classificada como difícil quando ainda não tenho familiaridade com ela, quando me faltam as habilidades necessárias para sua dissolução.

Para a criança que engatinha, o difícil é conseguir andar.
Para o estudante secundarista, o difícil é a matemática científica.

Ainda falta o exercício, o entendimento, a compreensão. Falta o treino da habilidade. Falta a maturidade. É difícil, mas não é impossível.

O treino das habilidades necessárias para tornar o difícil em algo trivial pode ser encarado como um desafio, uma aventura, uma diversão. É gostoso crescer, aprender, desenvolver-se, evoluir. Não há nada de amedrontador em evoluir. Ou pelo menos não deveria haver.

Então de onde vem o terror, o medo, o drama que torna a passagem natural da evolução num martírio de dor, sofrimento e lamentação?

Basta um pouco de observação para entender que, para a vida, harmonia tem relação com o movimento, o orgânico, o curvo, o arredondado.

Tudo no cosmos está em movimento, intercalando momentos de contração e expansão. Tudo se transforma e evolui. É a natureza da vida, do cosmos, do todo.

Mas se o natural é movimento e evolução, se as novidades existem para que nos adaptemos a elas desenvolvendo novas habilidades, por que nossa mente tende a encarar os desafios como dificuldades?

Nossa mente tem uma programação que prefere o cômodo, o padronizado, o uniforme, o reto, mas não necessariamente o harmônico.

Tudo que nos tira do conforto de nossas certezas encaramos com inimizade, dissabor e medo.

Que programação perturbadora é essa?

Surge então a figura do demiurgo, o “deus falso”, o “eu limitado”, criador de realidades frágeis e incompletas.

Recentemente assisti ao filme Snowpiercer (2013 - aqui horrendamente intitulado como “O Expresso do Amanhã”) que retrata os últimos remanescentes da espécie humana tentando sobreviver em um trem expresso deslizando sem parar no que seria um planeta Terra congelado, dominado por uma era do gelo artificial.

                         
O trem é uma metáfora da eterna distribuição da humanidade, em que a maioria desvalida e oprimida sobrevive aos abusos de uma minoria abastada. Uma verdadeira ditadura de classes: aos ricos, cabines luxuosas e sushi de salmão; aos pobres, amontoados na calda do veículo, ração a base de insetos. É também uma aula de marxismo. A solução está na revolução. Vemos Chris Evans interpretando o líder operário (óps!), digo, revolucionário, numa tentativa de tomar o comando da locomotiva e libertar o povo da opressão capitalista. Porém, é no encontro com o maquinista que vemos a fragilidade do sistema e ao mesmo tempo a sedução do poder. Isso porque nosso líder operário não se dá conta de que suas pretensões eram previstas e até planejadas pelo próprio maquinista do trem. A revolução é um embuste necessário para prover um rebbot de manutenção do sistema (algo parecido com a revolução de Zion e o encontro entre Neo e o Arquiteto na trilogia Matrix). A verdadeira saída mesmo é tirar o trem dos trilhos, destruir a ilusão de ordem e caos, desmembrar-se da falsa realidade, solução perceptível apenas aos que tem olhos de ver e ouvidos de ouvir.


Da terra congelada continuamos no universo dos apocalipses climáticos e chegamos a Interestelar (2014). Vemos nosso planeta desolado por pragas. Incapacitados de produzir alimentos, aos homens resta apenas procurar outro planeta para dizimar. Matthew McConaughey interpreta o astronauta que lidera uma expedição por um buraco negro, ou buraco de minhoca, até outro quadrante do universo com três novos planetas em condições promissoras para a manutenção da vida. Enfrenta toda uma série de percalços até ser sugado para a singularidade e transportar-se para um ponto distinto do espaço-tempo. Lá descobre-se agente das causalidades que perscrutaram seu destino. Novamente vemos a sombra do demiurgo tentando premeditar e planejar com seu senso de percepção limitado. Só na humildade diante do desconhecido pode o homem assumir o poder divino de conduzir o próprio destino, permitindo-se fluir com o infinito.

O problema do demiurgo está na arrogância de crer-se conhecedor do todo. Coloca-se soberano, acima do inconsciente que na verdade desconhece e teme. Articula com minúcia de detalhes a partir do universo conhecido, criando a própria realidade. Mas a grandiosidade da vida abrange também o desconhecido. A vida age sabiamente e escreve sempre certo sem precisar de linhas. Para o demiurgo, tudo que sai da linha lhe parece errado. Luta para defender seu reino frágil, repetição após repetição, até que um dia seu orgulho se esgote e volte a se colocar novamente a serviço da vida como um ser inteiro, percebendo-se parte do todo verdadeiro ao invés de reinar apenas sobre fragmentos.

Humilde, rendido a vida, pode então canalizar a sabedoria máxima, a força búdica ou crística, experimentando a consciência cósmica.

Esse exercício de humildade vemos no relato de Alejandro Jodorowsky no documentário Dune (2013). Todo esmero e minúcia dedicados ao maior filme de ficção científica que jamais foi filmado. Mas a lição está lá, na sua própria versão da história, na força crística finalmente revelada.

Sair do sistema é desmembrar-se da realidade criada por um deus falso. Esse deus habita nossas mentes como uma programação.

No filme Garoto 7 (Boy 7, 2015) vemos essa tentativa de acorrentar os desviados. Essa força gravitacional habita a sociedade e as culturas atraindo todos os seres para baixo. Mas é ao alto que se destina nosso espírito. Não precisamos extrair cirurgicamente o chip magnético que nos foi implantado, pois ele não é físico. Ele é frágil como uma crença infundada. E quando enfrentamos essas crenças infundadas, nossa consciência se expande.
                           
As crises de verdade não existem. São momentos de reboot do sistema, oportunidades para desmembrarmo-nos das falsas realidades e expandir nossas consciências.

A “crise” pode sim, momentaneamente, diminuir o poder de compra de meu salário, prejudicar minha liberdade de ir e vir, amedrontar-me quando estou desmemoriado, mas ela não existe nem é real, pois não pode jamais se abater sobre meu espírito.


3 comentários:

manoel disse...

Muito bom... Profundo, para análise de cada ser que realmente deseja o auro conhecimento. Parabéns!

Um olhar etílico da vida disse...

Muito bom

jorge disse...

Vim aqui direcionado do Dharmalog. Muito bom o texto, dá pra pensar em muita coisa com essa tua conclusão.