O filme é repleto de méritos, a começar pela produção e direção
de arte, a cargo de Cássio Amarante. A paleta de cores em tom sépia dá uma sensação
nostálgica e acolhedora. Cenários, figurinos e objetos de cena remetem eficazmente
à década perdida. Lembra muito o trabalho desenvolvido na série da HBO, “Magnífica70”.
O casamento se completa com a exímia trilha sonora,
totalmente contundente com a época retratada e amalgamada ao contexto, como
exemplo do recente “Em Ritmo de Fuga (Baby Driver)”, funcionando quase como
personagem da história.
A fotografia é caprichada, passando longe do vício brasileiro
dos três pontos, usado à exaustão nas novelas.
Quanto a Vladmir Brichta, que sempre achei meio canastrão,
faz um trabalho maravilhoso. Talvez porque seu overacting se ajuste à personagem.
Direção e produção se
complementam de maneira competente fazendo o que avalio como um dos melhores
filmes nacionais que já assisti.
Considero um filme competente quando saio do cinema com a
sensação de ter sido transportado para uma época, uma cena ou uma história.
Poderia debater uma série de outros pontos, mas o que mais
me intrigou ao assistir Bingo foi a nostalgia de um tempo em que o
politicamente correto não existia.
Lembro-me das roupas mínimas com que a Xuxa apresentava seu
programa. O auge pra mim, ainda criança, foi ouvir às 10h da manhã aquela música
“Pipi Popô”, enquanto a loira comandava uma gincana de meninos contra meninas.
Eu desliguei a TV naquele dia com vergonha.
Então imagine um Bozo apresentando seu programa totalmente
chapado de cocaína?!
A vida na sociedade dita civilizada tende a ser pautada pelo
senso comum e por isso repleta de hipocrisias.
Desde cedo aprendemos e nos acostumamos com as mentiras.
Toca o telefone, a criança prestativa atende. É a vizinha
chata, a criança tenta passar o telefone para um adulto responsável, mas o que
ela ouve é um pedido indecoroso: “Diz que a mamãe saiu”.
Mais de uma vez já aconteceu a velha anedota, a criança
volta ao telefone e diz, inocente: “Minha mãe mandou avisar que não está”.
Outras distorções são aprendidas, quando a criança vê uma
pessoa muito gorda, ou muito velha, ou muito estranha, aponta o dedo e se
inflama. O adulto responsável ensina: “Não aponta que é feio!”
A criança entende: Não fale o que sabe. Não fale o que
sente. Não fale a verdade. E assim passa a desconfiar dos adultos. Não
educamos. Apenas reprimimos.
De tempos em tempos a hipocrisia social atinge níveis mais
intensos resultando em distorções e censuras excessivas, desproporcionais. Foi
assim durante a sagrada inquisição. Foi assim com o AI5. Recentemente surgiu
uma anomalia semelhante batizada de “politicamente correto”.
Não existe contradição maior do que uma política correta. A
história tem demonstrado que o exercício da política não admite a ética. Não no
nível evolutivo na sociedade dita civilizada.
Então, nestes tempos em que a hipocrisia mais uma vez
impera, surge como bálsamo esse filme, essa memória.
Nostalgia similar me envolveu ao assistir a série “StrangerThings”. Muitos já vinham me recomendando esta série, mas só agora, de férias,
pude investir nela e me senti muito recompensando.
A série trata de um grupo de crianças que se dedica a
encontrar um amigo desaparecido. Telecinese, telepatia, dimensões paralelas e
uma horda de referências à década perdida tornam a atração incontestável.
É interessante imaginar que um bando de crianças consegue
fazer de bobo toda uma organização governamental, acobertando e resolvendo os
mistérios à sua maneira. As crianças da série pouco contam com os adultos,
simplesmente por desconfiar deles.
Os adultos não sabem lidar com a verdade.
Aquilo que não admitimos acaba extraditado para dimensões
paralelas, mas não deixa de existir. Em algum momento o que foi encoberto
ressurge, muitas vezes de forma grotesca e alarmante, a fim de não ser
renegado.
Os monstros precisam ser confrontados, a verdade aceita. Daí
progredimos.
O maior exemplo de grotesco é o próprio palhaço, sempre
presente nas grandes cortes e único capaz de falar todas as verdades sem ser
punido. O palhaço representa esse ser multidimensional, remete à pureza da
infância, a um tempo em que as mentiras não existiam ou não tinham função.
Sinto falta de um tempo em que podíamos rir de nossas
esquisitices. Temo quando os palhaços começam a ser reprimidos. Nunca se sabe
que tipo de monstros podem surgir de outras dimensões.
E o que seria do brasileiro sem sua irreverência?!
Reflexões sobre a Oficina Experimental de Cinema Digital do Centro de Convivência e Cultura de Taboão da Serra - SP
por Renato Guenther
05.01.2017
O cinema é uma arte grupal em sua gênese (MASCARELO, 2006) e só se faz possível numa prática coletiva, pois exige trabalho em equipe, onde todos os componentes são de fundamental importância.
Atuação, cenografia, fotografia, música, edição, entre outros recursos, se mesclam na obra final que se convencionou chamar de filme (ARONOVICH, 2014). O próprio cinema, como arte e produção estética, se mostra uma quimera ao reunir aspectos de diferentes artes antecessoras.
A Oficina Experimental de Cinema Digital do CECO Taboão surgiu em 2009 com a proposta de familiarizar os participantes ao uso das técnicas e tecnologias que envolvem a produção do cinema digital e permitir a expressão de seus anseios, sentimentos e perspectivas através da confecção conjunta de filmes de curta-metragem em vídeo digital, passando por todas as etapas que envolvem o processo. Em paralelo são estudados e discutidos a história do cinema no Brasil e no mundo, os vários tipos de cinema, e ainda exercitadas uma série de habilidades, desde criatividade, foco, atenção, organização, até comunicação, expressão corporal e principalmente convivência em grupo (FONSECA; GUENTHER, 2016).
A cada ano, durante os primeiros encontros da oficina, são discutidos temas de relevância para os participantes, gêneros e estilos de linguagem. São selecionados trechos de filmes, produções de audiovisual, livros e histórias em quadrinhos para referências de arte, enquadramento, linguagem e estilo. Em conjunto escrevemos o roteiro, dividimos a equipe entre atores, atrizes, assistentes de direção e produção, equipe de som, arte e figurino. São feitos ensaios e marcações no cenário que sempre partem das possibilidades oferecidas pela estrutura do CECO Taboão. Programamos os últimos 4 ou 5 encontros para as gravações.
O equipamento e o trabalho de captação de sons e imagens ficam a cargo da Escola de Cinema do Latin American Film Institute (LATIN AMERICAN FILM INSTITUTE, 2016). A partir da parceria voluntária com esta instituição promovemos o intercâmbio de conhecimentos e perspectivas. Em troca, oferecemos a certificação na experiência voluntária de terceiro setor aos profissionais e estudantes da instituição que se dispõe a apoiar o projeto. Montagem e edição ficam a cargo do oficineiro. Em parceria com outros setores e secretarias do município são produzidas cópias da obra finalizada e distribuídas entre todos os participantes.
Desde 2009, já nasceram 7 produções de curta-metragem em vídeo digital e uma oitava produção já se encontra em processo de finalização. Veiculadas em concursos e festivais culturais e pela internet através do blog da oficina, concorremos a premiações e divulgamos os trabalhos realizados em diversos Estados e municípios (OFICINA DE CINEMA DO CECO TABOÃO, 2016).
Ao longo da experiência, conquistaram-se aliados e admiradores através da candura e do encanto inerentes ao projeto e ao passo que surgem os resultados. Porém, a maior realização se faz na franca constatação dos progressos cotidianos dos participantes à medida que se demonstram capazes de expressar e materializar seus anseios. Ao se reconhecerem autores, capazes de criar algo conjuntamente e perceber seu trabalho projetado e contemplado por diferentes audiências, surgem sentimentos de valor próprio, pertencimento e maior integração social, o que colabora para a promoção de saúde como um todo (DIONISIO; YASUI, 2012).
Mas não só o usuário dos serviços de saúde mental do município se torna beneficiado. Ao longo da experiência viemos percebendo também o processo de sensibilização que ocorre com os profissionais, técnicos e voluntários que se doam ao projeto. Também as diferentes audiências que tem oportunidade de conhecer esse trabalho tendem a se comover com o tema da inclusão social do diferente através da arte (CANAL SAÚDE NA ESTRADA, 2016). De fato percebemos um processo de questionamento e conscientização a cerca das fronteiras que delimitam arte e saúde, público e privado, o são e o insano.
Assim como o cinema, esta oficina já nasceu marcada por hibridismos. Constitui um fenômeno que carrega em si características distintas de diferentes espécies. Produto da arte e das linguagens estéticas, encubada por um equipamento de saúde pública municipal, mas em parceria com uma instituição de ensino particular. Mescla formas, conteúdos, histórias e pessoas em prol do objetivo comum de materializar sonhos.
Quimera, não como o monstro da mitologia grega, parte leão, parte cabra, parte serpente, que cuspia fogo e aterrorizava aldeões (BRANDÃO, 1987). Uma anomalia, produto incidental do estupro da necessidade de dar voz aos inoportunos e da carência de recursos e condições.
Sonho que se sonha junto (SEIXAS, 1974), vem transpassando fronteiras e se mostrando forte como a realidade.
No CECO Taboão, cada filme produzido é uma gestação coletiva. Durante a criação de roteiro, personagens e cenários, cada participante colabora a seu modo, respeitado em suas limitações e estimulado em suas habilidades, de modo que ao final não se pode atribuir o filho a um único pai.
Quanto aos recursos utilizados, partimos inicialmente das disposições do equipamento público municipal. Mas cada participante acaba colaborando, trazendo peças do próprio guarda-roupas para compor o figurino ou da própria moradia para compor o cenário. Muitas vezes aproveitamos sucata ou objetos desprezados por outros, fazendo o melhor uso possível do que temos, alinhando as possibilidades de cada indivíduo com o tempo, espaço e até as condições climáticas disponíveis.
Inicialmente, quando Nise da Silveira fez uso da arte em asilos manicomiais, também sua ousadia e inovação foram vistas com incredulidade (BERLINER, 2016). Diante de tanto ardor e dedicação, enfrentando tantas limitações das mais diversas ordens, fica claro que não se trata de algo fácil. Mas se faz imprescindível perceber cada produção como algo lúdico, divertido: causa e conseqüência da necessidade humana de convivência em grupo.
Assim, alguns eixos fundamentais se delinearam:
- Binômio Arte e Saúde
- Parcerias público/privadas
- Gestações grupais
- Eficiência : “fazemos o melhor com o que temos”
- Diversão : “se não for gostoso não vale a pena”
- Inclusão
Mas se esta oficina não se compõe de meros retalhos ao modo dum monstro como fez o personagem de Mery Sheley no romance Frankenstein (ARAUJO, 2016), o que fermenta seu trabalho?
Segundo Vieira (1999), cosmoconsciência é a condição ou percepção interior da consciência do Cosmos, quando a consciência sente a presença viva do Universo e se torna una com ele. O termo é um neologismo para uma condição descrita anteriormente por outro ilustre acadêmico: Richard Maurice Buke.
Buke foi, entre outras ocupações, psiquiatra e dirigente de asilos para insanos no Canadá, nos idos de 1870. Reformista e inovador no tratamento de alienados, nutria estreita admiração pelo poeta americano Walt Whitman, de quem foi amigo e biógrafo (HARRISON, 1990).
Em 1901 teria publicado sua grande obra, “Consciência Cósmica” em que trata do fenômeno impar que deu nome a seu livro.
Falando de maneira simplista, o fenômeno consistiria numa espécie de expansão de percepção e entendimento, aliado a manifestações físicas bastante marcantes. O estado máximo de consciência do ser humano em que ressignifica sua experiência de existir, percebendo além das fronteiras aparentes. Algo a não ser narrado, mas experimentado e que o próprio autor tentou descrever assim:
Entre outras coisas em que não chegou a acreditar, percebeu e compreendeu que o Cosmo não é matéria morta e sim uma Presença viva; que a alma do ser humano é imortal; que o universo é tão bem estruturado e ordenado que, sem qualquer possibilidade de erro, todas as coisas trabalham juntas para o bem de cada uma delas; que o principio fundamental do mundo é o que chamamos de amor e que a felicidade de cada um é a longo prazo absolutamente certa. (BUKE, 1996, pág. 43)
Tal fenômeno equivaleria ao que as mais diversas correntes místicas definiriam como iluminação (WHITE, 1997). Estado de percepção de que estamos todos ligados e funcionando em harmonia com uma vontade, que ao mesmo tempo é a vontade de todos e uma vontade maior: transcendente.
Para além do misticismo, Buke descreve a consciência cósmica como um estado a que o ser humano evoluirá naturalmente assim como evoluiu um dia de uma consciência simplista para a autoconsciência.
Porém não é interesse deste artigo navegar em águas turvas, mas traçar um paralelo entre o fenômeno descrito por Buke e a prática observada na Oficina Experimental de Cinema Digital do CECO Taboão, pois os trabalhos relacionados aos cuidados com os mentalmente transtornados vêm se valendo cada vez mais de diferentes práticas e olhares, intersetoriais e multiprofissionais (AMARANTE, 2008).
Segundo Lopes (2015), em um Centro de Convivência, o conceito de “nós” é diferente do conceito de eu e o outro, “implica como um abraço probiótico que mistura perfumes dos corpos distintos quando esse abraço se dá.” (LOPES, 2015, pág. 28)
Quando nos percebemos borrando fronteiras (TAMIS, 2016) entre arte e saúde, publico e privado, são e insano, cidadania e exclusão, sonho e realidade, convém questionar se as fronteiras realmente existem ou se são mera reação à inconsciência de um sistema maior. De fato, como equipamentos e sistemas que deveriam funcionar em rede, percebemo-nos como desbravadores deste estado de consciência maior, não criando um monstro, mas trazendo luz para as possibilidades existentes, amadurecendo e evoluindo na prática de saúde mental: expandindo consciências.
Nos interessa portanto questionar e refletir se esta experiência não representaria a manifestação espontânea de ao menos um sussurro do processo de transcendência da ilusão de separação (OSHO, 2006) determinada pelo ego analítico humano.
Existimos mutuamente, somos membros uns dos outros.
A consciência é um vasto oceano e ninguém é uma ilha.
Nós nos encontramos e nos fundimos uns nos outros.
Não há fronteiras.
Todas as fronteiras são falsas.
(Tilopa em: OSHO, 2006, pág. 230)
REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2008.
DIONISIO, G. H.; YASUI, S. Oficinas
expressivas, estética e invenção. In: AMARANTE,
P.; NOCAM, F. (Org.). Saúde mental e
arte: práticas, saberes e debates. São Paulo: Zagodoni, 2012, p.53 – 65.
FONSECA,
E.; GUENTHER, R. Oficina Experimental de
Cinema Digital do Centro de Convivência e Cultura de Taboão da Serra, In: V
Prêmio David Capistrano de Experiências Exitosas na Área da Saúde 2015. Boletim
do Instituto de Saúde, Vol. 16, sup., novembro de 2015, p.37 - 40. Disponível
em: http://www.saude.sp.gov.br/resources/instituto-de-saude/homepage/bis/pdfs/bis16suplemento_web.pdf . Acesso
em: 27 out. 2016.
LATIN AMERICAN FILM INSTITUTE. Site
institucional. Disponível
em: http://lafilm.com.br Acesso em: 27 out. 2016.
LOPES, I. C. Os Centros de Convivência e a Intersetorialidade. In: Centros de
Convivência e Cooperativa, Cadernos Temáticos, São Paulo: CRP - SP, 2015, p.27
- 31.
MASCARELO, F. (org.). A história do cinema mundial, Campinas
(SP): Papirus, 2006.
OFICINA DE CINEMA DO CECO TABOÃO. Blog da Oficina Experimental de Cinema
Digital do Centro de Convivência e Cultura de Taboão da Serra - SP.
Disponível em: http://cinececo.blogspot.com.br
. Acesso em: 27 out. 2016.
OSHO. Tantra, a Suprema Compreensão, São Paulo: Cultrix, 2006.
SEIXAS,
R. Prelúdio. Música, álbum: Gita,
Lado B, Faixa 4. Gravadora: Philips, Brasil, 1974.
TAMIS, P. Rede dos Fazedores de Arte na
Atenção Psicossocial, artigo apresentado durante a mesa “Arte, Cultura e Saúde Mental”. In: 5º Congresso Brasileiro de
Saúde Mental. São Paulo: ABRASME, 2016.
VIEIRA, W., M.D. Projeciologia: Panorama das Experiências Fora do Corpo Humano. 4ª
edição. Rio de Janeiro: Instituto Internacional de Projeciologia e
Conscienciologia, 1999.
WHITE, J. (org.). O mais elevado estado da consciência. 10ª edição, São Paulo:
Editora Cultrix/Pensamento, 1997.