Ontem, quinta-feira
11 de outubro de 2012, por volta das 18 horas, peguei o trem da linha Esmeralda,
sentido Osasco, a caminho do Instituto Stanislavsky a fim de ministrar minha
aula de Psicologia Analítica aplicada a atuação metódica.
Contente
por achar um lugar para sentar, ocupei-me de meu passatempo costumeiro em trens
e ônibus: observar e devanear.
Notei
uma moça, morena de cabelos lisos tingidos de um tom mais claro, rosto arredondado
com bochechas protuberantes marcadas por cicatrizes de espinhas e cravos,
feições de quem descende do nordeste, aparente fruto da migração às áreas
periféricas desta gigantesca cidade. Até onde percebi, vestia roupas sóbrias de
tons escuros, uma simples blusa preta, um jeans colado. Talvez estivesse a
caminho da faculdade para um dia de prova depois do trabalho. Um prosaico dia
de quem se aperfeiçoa no ofício de operário, de pequena engrenagem da máquina
social onde cada um tem um papel na manutenção e continuidade do sistema de
vida e de crenças desta sociedade dita civilizada.
Notei
quando ela atendeu ao chamado de seu telefone celular. Pareceu rir como quem se
percebe vítima de uma brincadeira macabra, “O que? Ah vai, pára!”. Em seguida
seu sorriso ingênuo ganhou ares trêmulos, arqueando-se com as pontas para baixo.
Suas mãos reproduziram os movimentos de um doente acometido do mal de Parkinson.
Seus olhos inundaram-se com o brilho das águas salgadas de um mar de azares, “Pára,
não pode ser! Ele não morreu, eu não acredito, eu não acredito. Não brinca
comigo. Não! Não!”
A este
ponto suas emoções se extravasaram em prantos rasgados, gritos de inconformismo
e dor, mobilizando a atenção de todos que ocupavam o mesmo vagão. O silencio
geral tomou o ar dos que se entretinham com as amenidades de mais um fim de
tarde. Seus gritos e seu choro atravessavam a atmosfera como dardos letais
embebidos em veneno, aplacando-nos o peito com palpitações de dor. Soluçava e
berrava deixando caído e esquecido o aparelho celular que iniciou todo e estupor,
“Não pode ser, não acredito que ele morreu! Mataram o meu namorado!”
O
sujeito moreno de terno que dividia o banco, sentado a seu lado, totalmente sem
graça, não sabia se a acudia ou se levantava para dar-lhe mais espaço. Outro,
no banco da frente, com camisa do Corinthians e jaqueta amarela, tirou seus
fones do ouvido transparecendo-se penalizado. Todos pareciam sem ação, porém,
de algum modo, sensibilizados.
Uma
vida chegava ao fim lembrando-nos todos do princípio da impermanência, de atos
e fatos. Senti vontade de levantar-me e abraçá-la a fim de amenizar o choque
daquele momento trágico. Queria dizer ao rapaz de terno, de movimentos
patéticos que se anulava ao seu lado, para ampará-la, estendendo-lhe os braços.
Mas ninguém naquele trem reagia. Apenas observavam, de algum modo tocados.
Em mim surgia a paz serena de um yogue. Algo me dizia “fique atento,
observa”. Ao mesmo tempo um misto de pensamentos me inundava. A lembrança da
recente briga com minha namorada. E se fosse eu o morto, será que ela se
desesperava? Minha tristeza e frustração diante da possibilidade de nosso
relacionamento chegar ao fim, recentemente resfriado pelas armadilhas da
comunicação falha, das neuroses pessoais e da distância geográfica. O medo da
morte, o medo da mudança, o medo do fim. E eu havia dito para ela que, naquele
dia em que deixamos de nos falar, seu silencio foi como a morte e minha dor foi
como o luto por algo que tanto queria mas que se esvaia diante da impotência
nas adversidades. Mas não era eu o morto. Nem minha namorada. E talvez nossa
relação reagisse, saísse mais forte e sadia da UTI em que estava internada.
Finalmente alguém quebrou a onda
que paralisava o tempo no trem da menina desesperada. Um senhor veio lá do fim
do vagão, estendo-lhe a mão e se oferecendo para acompanhá-la até a próxima
parada. “Liga para sua família moça, vamos descer para você se acalmar”.
Seu gesto despertou a todos. O corintiano ofereceu seu aparelho celular para que a moça tentasse falar com algum
conhecido que a ajudasse. Outra moça do outro lado do corredor, também estendeu
seu aparelho oferecendo os créditos pré-pagos para aliviar um pouco a dor. Do
banco de trás uma senhora loura e baixa acariciou-lhe os cabelos e também se
prontificou a acompanhá-la. Os gritos, o choro e os berros ainda reverberavam
fazendo os vidros tremerem. Juntos, o senhor simples de feições rústicas com
sorriso solidário, e a senhora loira e baixa, apoiaram a moça amaldiçoada.
Desceram com ela na estação seguinte onde de imediato, até onde pude ver, um
funcionário da companhia de trens acolheu o grupo, levando a menina triste para
uma das cadeiras vazias da parada.
Nos segundos seguintes o vagão
lotou e o silencio funesto foi enterrado e esquecido, substituído por sons de
conversas rasas e algumas estéreis risadas. Duas moças paradas a minha frente
comentavam sobre os ingredientes que se fazem necessários para cozer uma paeja à moda espanhola.
As engrenagens da cidade que
nunca pára esmagavam a dor daquela triste e repentinamente viúva enamorada.
Todos voltando às trivialidades de uma vida sem alma, como se nada tivesse
acontecido.
O trem da vida anda. Mas e a
gente? Quando é que acorda?