Esta semana assisti
ao filme “Coringa”, com Joaquin Phoenix.
Trata-se de um
primor técnico de fotografia, direção de arte e demonstração do Método numa
atuação majestosa do ator principal. Muito provável que receba o Oscar por sua
eficiência técnica.
Revela-nos, a
partir de contextos plausíveis e até bastante atuais, as origens do
arquiinimigo de Batman.
Mas devemos buscar
nas subliminaridades algumas possíveis intenções não tão nobres.
Desde a Alemanha de
Hitler a arte deixou de servir a Arte. Há sempre um contexto subliminar, uma
intenção velada, ainda mais na indústria do cinema americano que serve tão bem
à publicidade comercial, moldando comportamentos há décadas.
Portanto, as
palavras que se seguem são um alerta.
Já escrevi aqui
sobre as similaridades entre a mente humana e a arte cinematográfica.
Principalmente quando nos referimos às limitações das nossas percepções e à
possibilidade de falsas interpretações das diferentes realidades. Tanto na vida
quanto no cinema, é muito fácil se cometer o engano de tomar a parte pelo todo.
Uma mesma cena pode mudar totalmente sua conotação a depender da perspectiva
adotada. Acrescentam-se requintes técnicos, luzes e trilhas sonoras e corremos
o risco de glamourizar a barbárie.
Longe de qualquer
censura, acredito que “Coringa” deve ser visto por todos, mas acompanhado de intensos
debates.
No decorrer da
história somos apresentados a um pierrot desafortunado que colhe cena após cena
amarguras que não semeara. Na busca pelas origens de sua desgraça, em paralelo
à sua escalada para a glória, sua perspectiva vai sendo alterada pela
insanidade até que seu senso de justiça distorcida nos apresenta à pior das
violências propagando o caos.
É fácil encontrar
na obra a distorção de um discurso político/social, refletindo o burguês
opressor na figura de Thomas Wayne e o proletário revolucionário na imagem que
vai se criando do Coringa. Mas há alguma verdade em se representar a gênese da
loucura e da violência na ausência de vínculos saudáveis.
Em minha prática
terapêutica, vivo atualmente a atormentada realidade de jovens e adolescentes
emocionalmente frágeis e deprimidos, entregues à ilusão das redes sociais,
jogos e vídeos em seus celulares, permeados por pensamentos suicidas e busca
por alívio na dor da automutilação.
Durante as Oficinas
de Roda de Conversa ministradas pela equipe da Dra. Albertina Takiuti, na sede
da Secretaria de Saúde do Estado de SP, aprendi que a criação e manutenção de
vínculos saudáveis é fundamental para a saúde e qualidade de vida do ser
humano.
À partir da
interação com diferentes pontos de vista, convivência saudável com diferentes
tipos de vínculo, ampliamos nossa percepção das realidades, somando impressões
e experiências. É a única forma de um transtornado não se entregar à repetição
de impressões distorcidas e opressivas que povoam sua realidade íntima.
Entenda, as
realidades humanas sempre foram sujeitas aos mais diversos tipos de opressão.
Há apenas cem anos nosso próprio país pautava sua economia na escravidão e
todos sabemos que de alguma forma essa escravidão persiste. Mas o problema
maior é quando internalizamos essa opressão e passamos a acreditar que só ela existe, repetindo em nosso universo
íntimo as torturas e perversidades a que fomos sujeitados externamente. A
repetição íntima dessas posturas sintomatizam a depressão, provocam ataques de
ansiedade e pânico e vêm ameaçando nossa civilização.
A glamorização de um
transtornado mental pode ser perigosa se não for acompanhada do debate. Sugiro
levar esse filme às escolas, reunirmos alunos, pais e mestres e agregarmos às
sessões de exibição grupos de debates engajados na busca de soluções diferentes
a fim de prevenir o sofrimento psíquico e a violência que enlaçam tragicamente o
personagem principal.
Batman e Coringa representam
as duas faces sombrias da mesma efígie de Janus. A figura remanescente do “Louco do Tarot”, profanada e destituída de
sua simbologia iniciática.
A ilusão da
separatividade tem nos assombrado. O abuso moral, americanizado pelo termo bullying, tem corroído as instituições
de ensino, os postos de trabalho e a sociedade. Temos vagado como essas figuras
tristes, os Skeksis e os Místicos do universo de Jim Henson,
recentemente restaurado pela Netflix. A violência não é a resposta, mas sim a
reparação dos vínculos, a reunião em torno do fragmento perdido do cristal encantado.
Amando ao próximo
como a mim mesmo, pois encontro nele meu reflexo, sou forjado para a única revolução
eficiente: a revolução íntima. Transformando-nos e expandindo a consciência,
transformamos naturalmente o ambiente, não da forma infantil que nossa mente
segregada sugere, mas de maneira respeitosa, humilde e reunida à consciência
cósmica, onde o bem pessoal não é destituído do bem universal.