sábado, 25 de janeiro de 2025

Chico Bento e a DMT

 Assisti “Chico Bento e a Goiabeira Maraviosa” e fiquei maraviado!

Sou um urbanóide paulistano, mas minha família paterna é de Pomerode, uma pequena cidade do interior de Santa Catarina. Na minha infância, havia a tradição de passarmos as férias na casa de meus avós. Lá, tomei banho de rio, pesquei na lagoa, comi butiá do pé e vi o céu estrelado. Com tios e primos vivi aventuras que a cidade grande não permitia.

Meus avós tinham um açougue e mercearia. Meu primo Denis costumava ajudar minha tia Dagmar a fazer as entregas e recebia gibis como pagamento. Quando eu estava por lá, ajudava também. Foi com incentivo da tia e do primo que tive meus primeiros gibis.

Mais que um passatempo, os gibis me ajudaram a estruturar o hábito da leitura. Assim que tive oportunidade imitei meu primo e pedi de aniversário uma assinatura de gibis da Turma da Mônica. Meu personagem preferido sempre foi o Chico Bento.



Quando assisti os primeiros trailers do filme, fiquei arrepiado. Gostei muito da primeira experiência realizada em “Turma da Mônica: Laços” (2019) e mantive a esperança de encontrar mais um trabalho de qualidade.

“Chico Bento e a Goiabeira Maraviosa” é dirigido por Fernando Fraiha, um dos responsáveis pela premiada série da Netflix “Ninguém está olhando” (2019).

O enredo inicialmente nos apresenta às versões humanas das personagens do gibi e ao cotidiano bucólico da Vila Abobrinha, evoluindo para uma trama que valoriza temas como ecologia e vida comunitária em contraponto as ambições mesquinhas dos falsos progressistas. Tudo por que o pai do Genezinho quer arrancar a goiabeira do Nhô Lau para fazer uma estrada.

A ambientação é rica e exuberante, repleta de natureza e temas que remetem à vida na roça. Lembra-nos que crianças podem sim brincar e estudar sem a perturbação dos celulares.

Incomodei-me apenas com o velho problema de áudio que prejudica o cinema brasileiro. Algumas falas das personagens foram simplesmente incompreensíveis. A captação de som direto é sujeita a imperfeições que nem sempre a edição consegue resolver. Talvez valesse a pena o recurso da redublagem para melhorar a qualidade, ainda mais quando temos atores mirins usando o dialeto caipira.

Isso era tudo o que eu podia escrever sem revelar mais detalhes da trama. Se você ainda pretende ver o filme, pare por aqui.

ALERTA ! À PARTIR DAQUI, CONTÉM SPOILERS !

Chico Bento tenta todos os recursos para salvar a goiabeira do Nhô Lau, afinal, não se trata só de seu interesse pela fruta, mas de uma árvore com a qual tem uma ligação mística.



Então, no melhor estilo xamânico ou iniciático, acompanhamos sua viagem primal, sem auxílio de fitoestimolantes, quando Chico encontra o espirito da árvore nos recônditos da Terra. Primeiro ele se torna formiga, experimenta a comunhão do grupo, torna-se árvore e sente a comunhão da terra, transforma-se em pássaro e entra em comunhão com os céus, reintegrando suas sombras para só então ter a visão de conjunto que lhe proporcionará a solução de seu enigma. É preciso ver do alto para entender. Mas só quem vive o profundo pode ascender. Só os envolvidos podem se desenvolver. E o melhor símbolo para representar a união do céu com a terra, do zênite e do nadir, é a árvore. Sua copa e suas raízes nos ligam a tudo. “...Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores. Desse modo obterás a glória do mundo. E se afastarão de ti todas as trevas. Nisso consiste o poder poderoso de todo poder …” Não à toa era esse o símbolo do nosso saudoso colegiado.



Não estamos viajando na maionese ao encarar Chico Bento como um personagem místico. Maurício de Sousa abordou assuntos esotéricos e paranormais em diversas historinhas, muitas vezes com a profundidade de um iniciado.



Em entrevistas ele já deixou claro que se inspirou em si mesmo e em sua infância interiorana para criar Chico Bento. Aliás, é linda a homenagem que o filme traz, com uma breve aparição do Maurício, ao estilo Stan Lee.

Chico é o caboclo, influenciado pela mesa branca, pajelança, umbanda ou jurema, herdeiro das tradições de benzimento, meio malandro, mas de coração puro. O filme consegue trazer esse aspecto transcendente de forma natural, apresentando-nos à individuação como ela poderia acontecer, simples e livre de apelos artificiais ou ritos institucionalizados.



Nada contra a busca de estímulos, mas me preocupa a falta de contexto como as plantas de poder às vezes são tratadas. Estudos e práticas vêm demonstrando o potencial curativo da DMT e de outras substâncias capazes de expandir as percepções, seja de forma natural, a partir da ingestão de chás, plantas e cogumelos, seja a partir de sintetizados como LSD ou MDMA. Mas o uso recreativo pode levar a efeitos nocivos como fuga da realidade e dependências química ou psicológica. É preciso lucidez para evitar a banalização.

Até onde pesquisei, goiaba não tem DMT, mas a goiabeira do Chico é misteriosa… vá saber!

Nosso corpo produz DMT e ela parece estar associada às experiências transcendentes, mas não deveria ser encarada como a causa desses estados ou como um fim em si. Ela seria apenas o “veículo químico” das experiências. Para “ver além” a ciência teria que admitir a existência extracorpórea da vida e a permanência da consciência para além da matéria. Um espiritualista entende que a matéria é produto da consciência e não o contrário. Assim seria mais fácil compreender fenômenos como as dores em membros fantasma descritas por amputados por exemplo, ou o encontro com entidades extrafísicas troposféricas que se queixam de dores em órgãos, mesmo destituídas do corpo outrora adoentado. A realidade é um estado de consciência.

Alegro-me com filmes assim. Encantei-me também com outro filme de caráter iniciático, o ganhador do Oscar “O menino e a Garça” (Miyazaki, 2023), já disponível na Netflix.



Há alguns dias revi pela Amazon outro clássico da minha infância, uma produção de Copolla, “O Corcel Negro” (1979), e reencontrei o tema da reintegração psíquica através da amizade entre Negro e Alec. As majestosas cenas na ilha deserta ilustram a dança de reunião entre instinto e consciência que viriam a justificar o mito dos centauros.



Enfim, chega de divagar por hoje…

Assistam os filmes e me digam o que sentiram!