domingo, 3 de agosto de 2008

A Bossa Nova fez aniversário. Para comemorar, o jornal O Estado de São Paulo lançou um concurso de contos. Dentre as regras, além do número redusido de palavras, era preciso alocar em alguma parte do texto a frase: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”. Escrevi e me inscrevi, mas não fui selecionado.

De que adianta escrever se teu material nunca for puclicado?!?

Por isso aproveito a democracia eletrônica e publico aqui, em primeira mão, meu conto:


"Uma canção para o fim do mundo"


Lado A: Uma nova batida

Foi um milagre da ciência!

Olavo fora um boêmio. Trabalhava dignamente na transportadora que administrava. Nunca deixou faltar nada à esposa nem aos filhos. Mas nas noites, se entregava ao samba. Fumava, bebia, dançava, cantava e se encantava com as mulatas ao luar.

Não foi a farra que consumiu prematuramente seu coração. Algo acelerou o processo. Soubera depois que se tratava duma má formação, um engano do metabolismo. Um nome estranho que não ousava repetir.

De fato, eram duras as previsões de seu cardiologista. Não mais de seis meses. Não havia outra cura que não a drástica substituição.

Foram infernais meses na fila de espera por um doador compatível. Vendeu caminhões para financiar seu tratamento. Largou definitivamente a bebida, o cigarro, as mulatas, a boemia. Quase perdeu a alegria. Mas nessas horas de dor, algo novo também ocorreu. Pode rever sua família com outros olhos. A intensa dedicação da esposa. A perspectiva de perder o florescer de seus rebentos. Tudo isso o fez prometer a Deus que valorizaria cada segundo de sua nova vida se tivesse uma segunda chance. Seria definitivamente um novo homem.

Do seu doador soube apenas que fora um desiludido poeta que esmigalhou os próprios miolos com um tiro numa noite de angústia. Mas preservara-lhe o coração. Depois de muita tristeza e espera, Olavo sabia que sua vida recomeçava. Dentro de seu peito havia uma nova batida.

Lado B: A voz sussurrante

Seis anos após a cirurgia que lhe salvou a vida, Olavo se encontra num luxuoso edifício, comandando seu império de transportes. Um pai afetuoso e marido exemplar. Um ser importante no circulo social e político.

Só, em sua sala após uma reunião, ouve um sussurro: “Melancolia”. Procura em vão a fonte do som. A voz se repete: “Tristeza”. Em seguida, sente seu corpo chacoalhar contra sua vontade. O teto racha, lustres e objetos vêm ao chão.

Minutos depois é noticiado o primeiro grande terremoto da história de nosso país, deixando milhares de mortos e desabrigados. Desesperado, sem sinal no celular, já em seu carro, Olavo ruma em direção ao lar, à família. No caminho vê bolas de fogo precipitarem do céu escuro. No rádio, os mais incríveis fenômenos e calamidades são anunciados à exaustão. Nas ruas, fiéis de toda ordem anunciando o apocalipse. Ao passar frente a um cemitério, o inconcebível: cadáveres deixando seus túmulos e afligindo os cidadãos.

Chegando ao lugar de sua casa, só escombros, fogo, desolação.

Andando perdido frente ao inacreditável inferno que testemunhava, novamente um sussurro: “Não há paz”.

Assustado, depara-se com uma esquelética criatura apodrecida. Do crânio, faltava-lhe o tampo. Violentamente o ser lhe profana o peito puxando para fora o coração. Pasmo, em seus últimos instantes de vida, Olavo vê o monstro devorar-lhe o pulsante órgão, cochichando com lábios carcomidos: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.

junho/julho de 2008

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